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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Da Brancura

Despertei de noite ao ouvir você chorar. Você ainda estava deitada ali, exatamente onde nos desejamos boa noite. Nós precisávamos que fosse boa, porque o escuro já havia sugado toda força que havia em nossas vidas para acreditar. Acreditar tendo fé. Fé de que a sua dor passaria logo. Fé de que encontraríamos uma cura para toda essa dor perversa que te consumia. Seu corpo tremia, mas você olhava para mim, está tudo bem, eu não me sinto mal, você quase implorou que eu acreditasse. Eu comecei a chorar. Não era justo que fosse você, e não eu. Eu sentia a sua dor como você teria sentido a minha, como você sentiu todas as minhas.
Deitei ao seu lado. Vai ficar tudo bem, você me dizia, você só precisa ter fé, mas eu já não sabia se ainda podia acreditar. O chão estava gelado, eu cobri você com o meu amor machucado, e se eu der um beijinho onde dói? você vai se sentir melhor?, e amei você com o meu cobertor: verdade, eu não estou com frio , pode ficar. Meu coração escorria pelo meu rosto, o frio rude alcançava minha alma e meu sangue quase parava de correr. Não vou deixar você, não vou. Não me deixe também, fica aqui comigo; sussurrei.
Você vinha enxugar as minhas lágrimas com seu pelo. Era o meu pompom alvo, branquinho, de algodão, meu floquinho de neve. Você colocou o focinho sobre o meu pescoço, não chore, eu te amo, segredou. A dor debilitava seus movimentos, mas você, com muito esforço, se aconchegou ao meu lado. Era você que doía,e ainda se compadecia de mim. Tudo doía mais ao perceber que era você quem me consolava. Não é justo com você, e eu não consigo te fazer melhor, não é justo!, você suplicou com os olhos luzentes que eu não sofresse também. Mas como posso eu não sofrer? você também não me deixaria, se eu estivesse doente assim. Você, me enchendo de beijinhos na bochecha, concordou com o que eu disse.
E eu me arrependi.
Me arrependi de cada vez que eu briguei quando você me lambia o rosto. Cada vez que eu briguei quando você roubava meus sapatos por eu não te dar atenção. Me arrependi de quando mandava você parar de latir, agora eu sinto falta do barulho que você fazia. Me arrependi de não ter corrido pela casa com você exatamente todas as vezes que você mordeu meus tornozelos, me chamando para brincar de pique-pega. Sinto falta de você correndo pela casa. Sinto falta da companhia que eu tinha para caminhar na rua, entretida com meus pensamentos distantes. Você alcançava todos eles. Sinto falta de você para segredar meus segredos mais secretos. Sinto falta da vida com que você iluminava essa casa. Sinto falta da alegria que você iluminava em mim. Sinto sua falta, minha única, minha verdadeira melhor amiga.
Sabe, era uma tarde de Dezembro e eu estava brincando no meu quarto, já estava de férias da escola. Nesse dia, vovó tinha me dito que nós iríamos receber uma visitante, viria de mala e cuia, e iria ficar por um tempo morando conosco. A mamãe chegou mais cedo, a campanhia gritou e eu saí correndo para falar com ela para descobrir quem era essa tal visitante misteriosa. Vovó abriu a porta e mamãe apareceu com uma caixa de papelão enorme. Surpresa!, ela e vovó sorriram para mim. Eu não tinha entendido nada, fiquei curiosa, quis saber o que tinha naquela caixa. Corri para olhar para dentro dela e foi quando eu e você nos vimos pela primeira vez.
Você era pequena demais para aquela caixa monstruosa. Você era o meu presente de Natal pequeno e assustado. Quer ser minha amiga?, você me lambeu e eu passei a amar você. Com um beijinho você me conquistou. Um beijinho de amor.
Qual vai ser o nome dela, mãe? Não sei, filha, você quem escolhe. Pode ser Bianca, mãe?, porque me lembra branca.... Por que não Bia, filha ?, disse papai que tinha entrado pela porta depois da grande surpresa, combina mais com ela. Vovó mesma gravou depois Bia na sua coleirinha vermelha. Mas a gente sempre soube que Bia é de Bianca, claro. E Bianca porque você é Branca. Pura.
Você, o meu algodão de amor alvo, permanecia ali a me ouvir tagarelar. Você tinha toda a paciência do mundo. Você sempre me respondia com lambidas quando eu deitava ao seu lado chorando problemas, medos e angústias. Você ali era a mesma, esperando por mim todo tempo do mundo.Você sempre cuidou mais de mim do que eu de você. Sempre.
Você deixou escapar, então, um olhar lânguido, você estava cedendo à dor. Peguei sua pata. Você ma estendia, para que eu não ficasse com medo vendo você sofrer. Por favor, Deus, não deixe ela morrer!, eu chorei aflita. Era o temor frente à possibilidade de te perder pra sempre. Não. Ainda não posso suportar isso. Ainda é cedo demais... fica comigo, não vá! você é a minha melhor amiga, não é? então fica! ah, céus! como sou egoísta.. não é justo com você.. por favor, não deixe que ela sofra, Pai, por favor! se você pode me ouvir daí, por favor, me ajuda a ter fé de que vai ficar tudo bem, por favor!, eu clamei, num pranto agonizante.
Eu e você passamos, juntas como sempre, mais uma noite ali, deitadas no chão frio. O seu choro era o meu choro, a sua dor, a minha também. Éramos eu e você. Nós duas. Uma amizade só. Que seria para sempre. Independente da dor. Independente do tempo. Independente das falhas. Para sempre, Bia.

Quem sou eu

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Camille Lyra. O nome fala muito da feição, tanto na sua significância quanto na sua origem; já o sobrenome faz jus à escrita predileta da autora. Sempre curiosa demais, sonhadora demais, ambiciosa demais, romântica demais, intensa demais. E, daquilo que exceder tudo isso, faço poesia.