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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Em Babel (das confissões)

Era uma vez um vestido róseo de cetim que percorria as escadas sem-fim em degraus soberbos absolutos. Havia em meio aos laços, às purpurinas, aos arrebiques e às joias da indumentária a dama, dona de uma cútis virginal - porém dissimulada, que aquela era deveras entendida de caminhos outros-. As longas negras madeixas de mademoiselle já seriam aptas para encobrirem-na de toda sua garbosa nudez, tão extensas que eram; mas suas vagas-quase-cachos estavam rendidas em uma trança austera que rastejava cada vez mais alto, ao infinito intangível das escadas. Seus fios, domados tal como ela. Mademoiselle, atada a infinitos que escalava sem sabê-los incompreesíveis.


 Февраль. Достать чернил и плакать!
Писать о феврале навзрыд,
Пока грохочущая слякоть
Весною черною горит. 

(Black spring! Pick up your pen, and weeping, 
Of February, in sobs and ink, 
Write poems, while the slush in thunder 
Is burning in the black of spring.)

Os olhos naquele vestido ignesciam para a noite primaveril recém-nascida. Pré-matura esta criança era, que a dama carregava nos braços tão frágil, tão fria. Ela embalava o choro, fazendo-lhe um berço morno com laços e purpurinas e arrebiques e jóias de cetim. Sua mãe amou a cria e, com um ósculo seco, bebeu da via láctea, que transbordou no seio; era a Madrugada...
O seio arfava, exaurido, já se rendia pouco a pouco, exausto da vigília. Era sempre mais alto, ela subia os degraus autômata-resoluta. Seus olhos cediam, piscavam, faiscavam, extinguiam... uma lânguida melancolia vinha pairando, tomando o governo absoluto das escadas; e a madrugada, safa dos braços, saía a engatinhar brincando pelos degraus da torre de Rapunzel.
A princesa subia insone. E, mais do que vestidos encantados e longas madeixas e chamas rubras e melífluos filhos do tempo, havia pesadelos e morcegos negros negros negros e chuva e trovões e tempestades.
E ébria ascendia ansiando escapar de seus funestos desvairos.
E sonhava com um anoitecer distante em que agouros maus morsegavam sua tez glacial apática. Eram aflitos aqueles olhos que a ninguém luziam mais; posto que restara nada. Subsistira somente aquele corpo qualquer prostado, enfadonho, desmoronando em uma torrente.

Достать пролетку. За шесть гривен,
Чрез благовест, чрез клик колес,
Перенестись туда, где ливень
Еще шумней чернил и слез


(Trough clanking wheels, throughg church bells ringing
A hired cab will take you where
The town has ended, where the showers
Are louder still than ink and tears)

Ela fizera de tudo nada-niente-nothing. Era uma donzela troçando das cousas sérias. Negligente. Egoísta. Mentirosa. Impassível. Traíra sem pensar em nada-niente-nothing-rien-nihil. E professava que mentiras eram verdades pelo palácio, cínica, sonsa. Não tinha sido por amor.
- ...é logro!
- Que há, moça? Que há?
- É tudo-tutti, everything, tout-omne, Cuca! Ho perso il mio cuore... (et est-ce que ubi amor, ibi pax? C'est ça?) Então, não há de se fazer qualquer coisa por isso?! Só saberão aqueles que conhecerem o meu lugar!
- Questi ragazzi! And you, foolish little girl, não chores, mamãe foi na roça, papai foi trabalhar..
- J'ai l'insomnie! Dandão, mamã! Dandão, papa!
- There's no mon, no dad, you're a grown up girl now!
- Onde estão mes amies? Parce que je ne sais pas, je ne sais pas!
- Estás sozinha, os erros são só teus, sozinha. Serás julgada sozinha, pas de amicus curiae! Sozinha...
-  Et allez vous pardonnez moi? ? Hypocrĭta! False face must hide what the false heart doth know! Quem não teria feito tudo-tutti, tout-omne, everything por amor?

 Где, как обугленные груши,
С деревьев тысячи грачей
Сорвутся в лужи и обрушат
Сухую грусть на дно очей. 

 (Where rooks, like charred pears, from the branches 
In thousands break away, and sweep 
Into the melting snow, instilling 
Dry sadness into eyes that weep.)

Os morceginhos beijavam-na deixando chagas, seus piparotes não os podiam espantar. As mossas pungiam, ardiam ígneas. Os olhos turbulentos velavam afogados em manchas negras, era tudo lama. Os pesadelos batiam mais suas asas, e chiavam e piavam e gritavam! Seus olhos turvos a derramar o líquido mais precioso da humanidade....
Seus olhos vertiam-se em lágrimas, e, já com a translúcida rusticidade teutônica de uma Mägdlein e não com a ambígua pudicícia libidinosa de Mademoiselle, chegava, então, ao topo da torre. Lady Macbeth, então, soltou os cabelos embaraçados, emaranhados, desgrenhados. Não havia honra, não havia méritos, não havia belas histórias para se contar estando presa ali. Não havia príncipes vindo em seu resgate. Não havia mais o rei cuidando de sua esposa. Não havia mais a Escócia para si. Havia fantasmas, havia pesadelos, havia loucura.
A mulher, como Ismália, pensava em ruflar as asas que Deus tinha lhe dado, mas sua alma pesava em demasia para ascender aos céus, ela sabia. Seu suicídio só poderia ser um ato de anomia, revelia. Oras, sem indultos, ela havia de admitir as consequências durante o tempo devido ou morrer. Morrer era o que ela menos temia. Ela temia mais a solidão, a carcereira Solitude que já a escoltava desde que um dia deixara de passear livre pela realeza por causa de suas verdades-mentiras. Ela temia os mocergos, que já voavam  ali pelo seu calabouço triste. Ela temia os sonhos maus, que vinham sempre ao nascer de todas as noites. Eram sonhos angustiados, pungentes. Os sonhos eram deveras os grilhões daquela torre. Até quando ficaria presa ali?


 Под ней проталины чернеют,
И ветер криками изрыт,
И чем случайней, тем вернее
Слагаются стихи навзрыд. 


(Beneath - the earth is black in puddles, 
The wind with croaking screeches throbs, 
And, the more randomly, the surer 
Poems are forming out of sobs.)

Sem escapismos até o fim, donzela. Where are you going to hide from yourself?


Presto aqui, e em russo mesmo, respeito e gratitude ao caríssimo autor do poema, Boris Pasternak e à sua irmã mais nova,  sua tradutora para o inglês, Lydia Pasternak.
Большое спасибо

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Quem sou eu

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Camille Lyra. O nome fala muito da feição, tanto na sua significância quanto na sua origem; já o sobrenome faz jus à escrita predileta da autora. Sempre curiosa demais, sonhadora demais, ambiciosa demais, romântica demais, intensa demais. E, daquilo que exceder tudo isso, faço poesia.